Matheus Hotz é poeta, professor e oraculista. É autor de O Dia do Búfalo (Macondo, 2018) e terá seu segundo livro lançado em breve. É hipertenso, ansioso e gasta dinheiro demais com videogames, mas garante que está tentando o seu melhor dentro das atuais circunstâncias.
1. autoretrato
acordo cedo
como margarina pura e
arrumo briga com
vizinho
amo as facas e canivetes
e na mesma intensidade
tenho medo
minha maior verdade
até hoje
foi uma calcinha rosa
que comprei sexta
no garden shopping
este sou eu aqui estou
estou sou eu aqui estou
este sou eu aqui estou
2. terapia
como já diria dra pizarnik
o problema é que falo demais
escuta o silêncio
quando penso o silêncio
penso em xingar palavrão
penso no oráculo do cavalo
do ogham penso na árvore
no ancião no símbolo
que pode ser
pode ser
o silêncio dra
como você se sente
quando pensa
nisso tudo
e em seu pai?
150 reais a hora
pra isso?
3. vanguarda
estou dando voltas
meu refrigerador quebrou de novo estou
fugindo do nome
de meu pai
dando voltas dando voltas
a torradeira elétrica pifou eu
nem tenho torradeira
estou fugindo
da sombra de meu pai
será que meu pai
usaria calcinha rosa
será que
sou eu
quem carrega o peso
de ser o primeiro a gritar
estou de calcinha!
e começar a revolução
abrir as portas estar
além do medo
4. x a roda da fortuna
estar além do medo
um homem carrega
em suas costas
somente aquilo que seu pai
os pais de seus pais
e os pais dos pais de seus pais
não puderam suportar
chama-se karma
ou algo mais profundo trauma
ou algo mais profundo o dedo
podre sacana de Deus
estar além do medo
além dos rostos enrugados tristes
calvos rostos enrugados frustrados
calvos medos enrugados
esqueceram de si
nas portas do desejo
o deus sacana aponta seu dedo podre
5. se meu pai usasse calcinha
volte um pouco na história da calcinha
dra pizarnik diz e me olha lúcida
eu digo que bem não é apenas
uma calcinha é um
caça aéreo
não é apenas uma calcinha é
top gun maverick
não é apenas uma calcinha é
toda uma geração
de homens machos
mortos por dentro e você pensa
dra pizarnik
seria possível
tão possível
curar as feridas latentes
destes homens
com apenas alguns fios de algodão
docemente firmados
entre as bochechas do cu
se meu pai usasse calcinha
um pecinha apenas
fina e escarlate
ele não teria sequestrado
meu desejo de amar
não teria instaurado
entre seus dedos grossos
de macho
o medo do escuro
de chorar sozinho
se meu pai usasse calcinha
uma pecinha delicada
de renda rubi
ele não teria sequestrado
meus olhos famintos
não teria instaurado
sobre seu punho
áspero
meu medo da morte
Arte: A Criação de Adão, de Michelangelo.